Aquele que bate e aquele que apanha: como lidar com o sofrimento de ambos
28 de novembro de 2024

Esse é provavelmente um dos tópicos mais difíceis de lidar quando o assunto é parentalidade (não só para os pais em si, mas também para este que escreve, tamanha é a quantidade de temas sensíveis): a dinâmica entre a criança que agride e a criança que é agredida.
A primeira coisa que temos de fazer é balancear de maneira saudável a importância da questão. Aqui não vamos aderir ao discurso "isso é coisa de criança, essa geração é muito mimizenta!" e muito menos "ai meu Deus, isso é o fim do mundo!". Vamos tentar manter nossas expectativas realistas e nossos pés no chão, caso contrário, iremos surfar nas ondas da fantasia descabida.
Segunda coisa é nos darmos a oportunidade de olhar por um viés mais compassivo, tanto com a criança que sofre quanto com a criança que agride de fato. "Mas como assim?", você pode me perguntar, "como olhar da mesma maneira para as duas partes?". Vou trabalhar para que isso fique mais claro ao decorrer do texto, por hora podemos dizer basicamente que aquele que tem um comportamento disfuncional (aqui exemplificado pelo que agride) também pode estar em sofrimento de alguma forma, seja na dificuldade de elaboração de algum conteúdo mal resolvido, seja pela procura da atenção que falta em outros lugares ou seja por qualquer outra razão.
A questão é que ninguém nesse meio está em bons lençóis. Nós, adultos, precisamos dar um passo para trás e olhar a coisa como um todo. O que está acontecendo com essa que bate e como está essa que apanha? Como colocar os dois de novo em um lugar de segurança, afeto, acolhimento e desenvolvimento? Compaixão e pés no chão, minha gente, compaixão e pés no chão.
Então vamos tentar começar pela criança que está agredindo. Todo ser humano tem desejos intrínsecos de se sentir aceito pelo grupo e contribuir. Quando isso não é contemplado em alguns pontos, a criança pode tentar lidar com isso a partir de uma perspectiva de sobrevivência. É como se ela pensasse "preciso ser amado e se para isso eu tenho de dominar o outro, assim farei".
Claro que ela não pensa dessa maneira tão clara, ou que o faz de forma consciente, mas coloquemos assim para fins didáticos, ok?
Bom, vamos para um exemplo prático. Um garoto que não recebe atenção pelo que faz de certo, mas sempre leva bronca quando erra, pode começar a adotar um comportamento agressivo na escola para receber atenção dos pais ou professores. Afinal, se a bronca é o único meio que ele conhece para ter um contato humano, então é por esse caminho que ele vai ("não gosto de levar bronca, mas pelo menos alguém está olhando para mim").
Agora, imagina uma garotinha em uma situação parecida, mas o que ela deseja é a atenção de alguma coleguinha de sala. O medo de ficar sozinha pode ser tão grande que ela passa a dominar a amiga e o ambiente, para tentar assegurar que não será abandonada. Assim, ela manda nas brincadeiras, não deixa a amiga fazer o que deseja e nem permite que outras colegas se aproximem (“se ela fizer o que eu quero, então terei ela para sempre. Saiam daqui, invasoras!”).
Mais um? Então, bora lá. Um menininho tem uma família em que a ideia de fazer algumas coisas de certas maneiras são sempre as corretas e não devem ser mudadas. Ele vê as figuras próximas agindo assim e dele também é exigido que adote esses comportamentos (uma família, digamos, um pouco inflexível com alguns assuntos). Ele pode tirar disso que precisa ser "mandão" para ser aceito (e dessa forma, começa a querer se impor aos colegas) ou ainda que, por exemplo, meninas não podem fazer parte de determinado assunto ou grupo porque "não é certo", excluindo as garotas de maneira incisiva de algumas brincadeiras (“devo fazer tudo certo para ser aceito, não posso vacilar, então pare com isso agora e faça o que estou mandando!”).
Nessa perspectiva fica muito claro que o que a criança está tentando é ser amada, aceita e se mostrar produtiva. Quando ela bate e recebe atenção, se sente amada (de maneira disfuncional). Quando ela domina o outro, se sente segura e aceita (de novo, disfuncional). Quando adota comportamentos que considera importantes para seu grupo familiar, irá reproduzi-los, mesmo que isso custe o bem-estar dele com os coleguinhas (adivinha? Disfuncional mais uma vez).
Outro ponto aqui é a possível culpa que muitos passam a sentir. É inegável que as crianças se vinculam e quando uma agride a outra, visando ser amada e se sentir segura, pode ficar muito mal por ter feito isso, mesmo que não tenha plena consciência dessa dinâmica complexa. Então, ela agride aquele que gosta para poder ter a atenção daquele que ama e que lhe oferecerá um senso de pertencimento.
Nesse balaio de gato todo, podemos encontrar uma criança confusa, carente e se sentindo culpada. Já imaginou ter de elaborar isso sozinha? Pois é.
Mas, agora vamos para o outro lado. Aquela que é agredida.
Aqui é mais fácil de entender, não é? A gente tem um senso de justiça que é presente (e até implacável). Uma criança que apanha pode se encontrar em um lugar de medo, raiva, sem saber o que fazer e precisa ser muito bem acolhida. Para os pais dessa criança, a dor é imensa também. Ver nosso filho sofrendo desse jeito, dói bastante. Falando em pais, podemos conversar um pouco sobre como temos lidado hoje em dia com essas situações.
O que tenho percebido é um comportamento bastante intenso dos pais de evitar o sofrimento dos filhos a todo custo. A qualquer sinal de dor, muitos pais correm ao resgate da criança, deixando de aproveitar a oportunidade da resolução saudável. Nossos filhos irão encontrar muitas pessoas agressivas durante a vida, e estaremos lá para salvá-las cada vez menos. Não seria interessante que a gente os ensinasse a fazerem isso sozinhos?
"Ah já sei, então vou falar para meu filho bater de volta, como meu avô falava para meu pai".
Não, calma, não é bem assim.
Existem diversos comportamentos possíveis de serem ensinados, como falar de forma firme para que o outro pare, avisar um professor ou responsável, gritar por ajuda ou mesmo fortalecer a capacidade de suportar frustração. Tudo isso são exemplos de comportamentos funcionais e relativamente simples de serem passados aos pequenos.
Acho que até aqui ficou claro o que quero dizer com uma abordagem realista do assunto. Logo, esse tipo de embate não deve ser deixado de lado, mas ao mesmo tempo não deve ser colocado como a pior coisa do mundo. Ao olharmos para isso com os pés no chão, podemos perceber que ali possivelmente há duas crianças confusas, com medo e necessitadas de amor. Nosso trabalho é ensinar novos comportamentos possíveis, dar alternativas saudáveis, tanto para o que bate quanto para o que apanha.
Falei de senso de justiça logo ali acima, e me lembrei do senso de Justiça de Platão que talvez caiba bem aqui. Para ele, a justiça não é a igualdade em si, mas sim, dar a cada um o que eles de fato precisam para viver bem. Dar à criança que bate a oportunidade de se sentir amada de maneira saudável é tão justo quanto ensinar à criança que apanha habilidade de se defender de maneira adaptativa. O justo é tirar os dois dessa situação de sofrimento.
Claro, cada caso é um caso, e devemos olhar para cada situação de maneira única, com olhos atentos e curiosos. Ao mesmo tempo, não podemos perder de vista o básico, o que é indispensável; ou seja, o que dar a cada uma das partes para que possamos nos encontrar no meio do caminho?
Agora, nós, pais e adultos, precisamos nos colocar no nosso lugar de gente grande. Cada vez que crucificamos uma criança que agride, estamos condenando-a a ficar presa nesse lugar disfuncional. Cada vez que isolamos nossos filhos das dificuldades ao invés de ensiná-los a lidar com as coisas, estamos impedindo que se tornem autônomos e independentes.
Nosso papel é mediar o caminho deles para uma vida plena. O que devemos fazer? Montar uma rede de apoio? Envolver a escola, o vizinho, os pais de todas as crianças? Devemos procurar ajuda? Não sei te dizer…cada caso é um caso.
Mas, o que eu tenho certeza é que nosso papel é estarmos conscientes da maneira mais compassiva e realista possível, estando abertos a escutar, falar com assertividade e afeto. Essas coisas nunca são fáceis, mas são possíveis.
Só precisamos manter os pés no chão e o amor no coração.
Henrique Costa Barros (CRP: 06/210223)
Psicólogo Clínico e Educador Parental do Vivência e Convivência
@psi_henrique.costa