"Dá seu celular pra ele então"
20 de fevereiro de 2025

Todo mundo quer que o filho seja generoso, saiba dividir os brinquedos e seja bacana com os colegas. Eu também quero. Ao mesmo tempo, também queremos que eles não façam nada que seja contra sua natureza para agradar aos outros. Até aí estamos de acordo. Como estamos construindo essas habilidades na criança? (tem um texto bem bacana sobre habilidades escrito há pouco tempo, vale a pena conferir)
Pegando um exemplo bem cotidiano, é bem comum ver as crianças juntas brincando na área comum do condomínio. Você chega com seu filho e ele está levando o seu mais novo exemplar do carrinho do programa de TV favorito dele (você já prevê o problema, sei disso). Lá, não deu nem 3 minutos de brincadeira e um garotinho que acabou de se mudar pra lá vem tentar pegar o carrinho. Seu filho recusa, empurra o colega, esse colega chora, bate no seu filho. Caos, choro, barulho. Você sabe, o de praxe.
Como você é uma boa mãe, quer que seu filho aprenda o certo. Vai até ele e diz o clássico “você tem de dividir com o coleguinha”. “Colega? Eu nem conheço o cidadão!”, pensa seu filho, “tá louca, mulher?”.
No fim, ou você tira o carrinho do seu filho pra emprestar para o garotinho, ou se afasta das outras crianças para tentar te um pouco de paz, ou volta pra casa, às vezes até jogando sobre ele certas ameaças que nunca irá cumprir, como “a gente não vai mais vai descer se você continuar fazendo isso” (vocês vão descer de novo, todo mundo sabe). Via de regra, é algo assim que acontece com muita gente.
Aqui aconteceram dois problemas, a meu ver. Um relacionado à manejo e outro às relações sociais de convívio entre adultos (sim, adultos). Vamos começar pela questão do manejo primeiro.
Criança pequena não sabe dividir. Ponto. Umas tem mais facilidade, outras menos. Às vezes consegue com umas coisas, às vezes com outras. Mas, no geral, não é uma habilidade bem aprendida e aplicada por eles em todas as situações que isso se faz necessário.
Eles não têm facilidade nisso porque naturalmente a criança é egocêntrica. Isso não é um defeito, é só uma característica normal do ser humano. O cérebro deles está programado pra agir e reagir a partir das emoções e do prazer. Se eu gosto, eu quero...e quero agora. Conforme eles crescem, o cérebro vai amadurecendo e eles vão conseguindo processar informações mais complexas sobre regras sociais, empatia, vínculos etc. A partir daí, o dividir começa a fazer sentido e se torna possível.
Já reparou como esse tipo de comportamento aparece em vários momentos? Aqui em casa, por exemplo, o Bernardo sempre come minha comida, mas quando eu peço um pouco da dele, ele faz uma cara de incrédulo e nega. Parece que eu estou fazendo algum tipo de pedido meio estúpido. “Você quer que eu... divida... o meu lanche com você? Oh, pobre mortal, claro que não.”.
A boa notícia é que isso não dura pra sempre. Não demora tanto assim pra eles começarem a mudar. Repare que eu disse “começarem”. Ou seja, é um processo. Hoje eles conseguem, amanhã não, e assim vai. Então, a gente vai levando como dá.
Ok, mas como deixar isso mais fácil? O que fazer para eles aprenderem isso de forma mais saudável, respeitosa e tranquila? Vou deixar aqui algumas dicas. A primeira coisa é determinar com ele duas “classes de brinquedos” que irão levar para o encontro com as crianças: o brinquedo especial e os brinquedos de dividir.
O brinquedo especial é aquele que ele pode escolher para não emprestar. É aquele especial que só ele vai usar. Delimite apenas um, ou seja, ele terá de escolher somente aquele que ele mais gosta.
Os brinquedos de dividir (sim, plural, preferencialmente) são aqueles que ele vai precisar dividir com os colegas em algum momento. Ele pode até brincar com esses, mas em algum momento terá de deixar outros brincarem também. Aí a quantidade é mais livre, você quem sabe quantos quer levar e recolher no final.
Agora, antes de descer, tenha várias conversa de planejamento com ele. Explique cada categoria e como vocês vão administrar os brinquedos quando estiverem com os colegas. Conforme estão se arrumando para sair, vá falando “olha, vamos descer com o brinquedo especial e os de dividir, você lembra o que a gente faz com eles?”, ou “quem você acha que vai querer brincar com seus brinquedos de dividir?”, e ainda “será que terão outros brinquedos lá? Você pode deixar os amigos brincarem com os seus de dividir e você pode brincar com os deles também”. Invista nesse planejamento prévio.
Quando chegarem no parquinho, alguma criança vai querer pegar o brinquedo que seu filho escolheu para não dividir. Antes disso acontecer, você ensinou ao seu filho o conceito de brinquedo especial, certo? Agora é hora de usar isso.
Você pode ensinar seu filho a verbalizar o “não” da forma mais respeitosa possível. “Não vou dividir esse hoje porque é o meu especial. Você pode pegar esses outros aqui”. Se a criança continuar a querer pegar, você pode se abaixar e explicar para ela que aquele é o “brinquedo especial do fulano” e que não pode ser dividido hoje, mas que existem outras opções para ela escolher. Você pode tentar distrair a criança de outra forma, redirecionar todo mundo. Enfim, aí é gerenciar a vida acontecendo.
Agora vem a parte social entre adultos. Existe muita dificuldade entre a gente de parecer que somos “pais ruins”. “Nossa, o que irão pensar de mim se meu filho não dividir? Se ele bater? Se ele der escândalo aqui?”. Quem nunca, não é?
Essa preocupação é relativamente normal, mas ela não pode tirar nossa atenção do que importa. A gente não pode forçar algo nas crianças por conta de vergonha do que a vizinha vai pensar. Se seu filho está aprendendo a dividir, vão ter momentos que a coisa vai dar errado e o filho da vizinha vai ficar chateado por não brincar com o carrinho que queria. Aí, cabe a mãe dele manejar o filho dela. Você não pode deixar seu filho ser violento com o colega, mas obrigá-lo a fazer algo que ainda não sabe, também não é o caminho. Tente o manejo da melhor forma possível com todos os pequenos, mas não deixe de fazer o certo por conta de convenções sociais.
Essa habilidade vem com o tempo. Mas, não esqueça também que a gente que é adulto também é bastante territorialista com as coisas que gostamos. Você empresta seu celular, seu vestido, seu carro pra qualquer um? Seus brincos, seu terno, seus livros? Aposto que algumas coisas você também não divide com o coleguinha. Quem disse que seu filho tem de dividir tudo? Você é uma boa pessoa, e ele também vai ser, mesmo que não entregue para o vizinho o carrinho que tanto ama.
Henrique Costa Barros (CRP: 06/210223)
Psicólogo Clínico e Educador Parental do Vivência e Convivência
@psi_henrique.costa