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Guia prático para uma criança não "gravemente" traumatizada

06 de março de 2024

Guia prático para uma criança não

Olha, muita gente hoje em dia usa o termo trauma de forma errada. Vamos começar desse ponto e ir construindo uma ideia que, acredito eu, pode ser que mude a sua forma de olhar para esse tema. De forma bastante simples, trauma é qualquer estímulo experienciado por um determinado organismo quando ele não tem condições plenas de lidar com isso sozinho. Sabe aquele termo “traumatismo craniano”? Vou usar uma licença poética aqui e pegar emprestado dos colegas médicos essa referência. 

Pois bem, quando alguém sofre um acidente e bate forte com a cabeça pode machucá-la gravemente. Aí pode-se dizer que houve um traumatismo craniano. Mas, quando um jogador de futebol, em uma cobrança de escanteio, cabeceia a bola e marca um gol, ele sai correndo comemorando, sem nenhum sinal de traumatismo na região. Em ambos os exemplos os sujeitos sofreram um estímulo na cabeça, mas um deles foi pequeno e de fácil “gerenciamento”, já o outro foi muito além do que o organismo poderia aguentar, por isso houve uma possível tragédia. 

Certo, e o que isso tem a ver com sua criança? Vamos a um exemplo do nosso cotidiano parental: para uma criança pequena, o mundo pode ser algo bastante diferente e assustador, e ela usa o choro pra comunicar a dificuldade de lidar com isso; muitos pais acreditam que deixar essa criança chorando irá torná-la mais forte ou ensiná-la a se autorregular. Aqui podemos dizer que o estímulo pode estar acima do que o organismo (mental e físico) da criança pode aguentar e gerenciar por si só. O mesmo se passa com um adulto que vivencia o luto de uma pessoa muito importante sem suporte. Talvez o organismo dele, mesmo já alcançado uma maturidade, tenha muita dificuldade de lidar com esse estímulo que a vida fez o desfavor de jogar em seu colo. 

Tanto essa criança, quanto esse adulto, estão passando por situações muito complicadas de lidar sozinhos, onde muitas vezes eles não possuem as habilidades necessárias para passar pela situação. Essas coisas são, portanto, traumáticas. Bom, acho que aqui ficou claro a definição de trauma com a qual estamos trabalhando. Trauma, portanto, é tudo aquilo que a criança experiencia sem ter condições suficientes para tal. 

Conforme a criança cresce, nosso trabalho, dentre um milhão de outras coisas (e por isso estamos tão cansados), é desenvolver junto delas habilidades para lidar com estímulos como, por exemplo, conseguir esperar por alguma coisa, lidar com frustrações, regular a própria raiva ou dividir a mãe com o novo irmãozinho. 

Por isso que uma criação responsável é baseada em acolhimento, amor e paciência. Aprender tudo isso não é fácil pra criança pois demanda tempo, energia, “sangue, suor e lágrimas”, tanto dela quanto dos cuidadores. Mas, gente, é isso que vai fazer com que ela tenha a capacidade de “digerir” cada vez melhor os estímulos que a vida traz pra ela. Se a gente não fizer isso, o que é grande e difícil nunca se tornará pequeno e fácil pra ela. Ela vai permanecer numa posição em que acidentes ocorrerão com uma frequência muito maior do que gols de escanteio. 

Temos de andar junto com elas nesse processo sempre lembrando que a criança se traumatiza muito mais fácil não porque se machuca, mas porque passa por isso sozinha. “Ah, então é só fazer isso e minha criança nunca vai se traumatizar?”. Acho que você já sabe que a resposta é um enorme e óbvio NÃO. Isso tudo é uma efetiva (não infalível) forma de evitar o máximo possível traumas sistemáticos, repentinos e complexos. A vida é invariavelmente imprevisível demais para que possamos saber tudo que vai atingir nossa criança. Mas, isso aqui já é um ótimo começo pra uma vida mais fácil e feliz pra ela.


Henrique Costa Barros
Psicanalista e Educador Parental
@paz_e_filhos