Todo mimado é a cruz que alguém carrega
05 de março de 2025

Uma coisa que na minha opinião salta aos olhos quando comparamos a forma de se criar filhos antigamente e como fazemos hoje é a atribuição de responsabilidades. Antes, colocava-se muito nas costas das crianças. E isso não é coisa de “pai Nutella” (aliás, termo bem desnecessário), mas sim uma questão histórica mesmo. Crianças já trabalharam em fábricas e até relativamente pouco tempo atrás, começavam a vida laboral no começo da adolescência por longas horas, atrapalhando e muito seu desenvolvimento cognitivo, físico, emocional e social. Já hoje, muitas famílias sofrem com os malefícios de não atribuírem a elas responsabilidade nenhuma, criando verdadeiros despreparados para a vida (e elas ainda levam a fama de serem uma geração meio perdida, outro termo bastante desnecessário e injusto; afinal, onde estão as oportunidades para desenvolver as habilidades necessárias?).
Conforme a criança cresce e passa a ter condições de fazer algumas coisas sozinhas, é muito interessante que elas tenham a oportunidade de entrar no mundo da contribuição familiar. Se com 4 anos, por exemplo, ela consegue separar o pijama para dormir, que o faça! Se com 8 anos ela consegue preparar uniforme, lancheira, mochila e sapatos para a aula do dia seguinte, que o faça!
Isso tudo gera muitas coisas realmente positivas para ela. Temos um texto exatamente sobre isso onde foram destrinchados diversos benefícios cognitivos, emocionais e comportamentais que as crianças experienciam ao desenvolverem habilidades através da responsabilidade. Recomendo que você, caro(a) pai/mãe amigo(a) leitor(a), procure esse texto.
Quando isso não acontece, a história é outra bem diferente. Um dos pontos negativos disso é uma espécie de sentimento de demanda insaciável que surge na criança. Como uma crença que diz que o mundo tem de servi-la, que seus pais precisam contemplar todas suas necessidades. A criança vira uma mimada e assim entra na vida adulta.
E o que é a pessoa mimada se não aquela que acredita que a vida como um todo precisa supri-la?
E ainda tem mais. Junto com essa demanda vem um senso de ingratidão. A gratidão é, dentre outras coisas, o reconhecimento do benefício recebido. A pessoa grata recebe, entende e reconhece que algo muito bom chegou até ela, seja por qual meio for, e que ela está se favorecendo disso. Uma sensação de conexão com essa fonte surge, compreendendo que ela fez sua vida melhor, de alguma forma. Se a criança mimada vê o mundo como algo que precisa servi-la, como vai entender os benefícios de receber alguma coisa a partir de uma fonte que merece reconhecimento? Afinal, ela não está fazendo mais que sua obrigação.
Ou seja, quando a gente mima uma criança, a gente cria um exigente ingrato.
Por isso a responsabilidade gradual e compatível com a idade é tão importante. Nela, a criança entende que precisa colocar coisas no mundo, não só receber dele. Ao receber, ela percebe que isso não vem do nada, mas sim de um esforço de alguém. Há o reconhecimento do esforço alheio.
Muito bem, acho que vale a pena tocar em outro ponto. Falemos sobre os pais. Aqui, não faremos discurso de acusação, mas (espero) de acolhimento, em certa medida.
Lidar com um exigente ingrato (vulgo mimado, reitero) é um peso colossal. Quando a gente faz algo pelo filho que ela não consegue fazer sozinho, existe uma naturalidade óbvia. Pode ser cansativo, mas é esperado. Por isso que ninguém acha um absurdo uma mãe alimentar um bebê, dando-lhe leite na boca. Agora, quando fazemos algo pela criança que ela já consegue fazer sozinha, isso vira um peso não só físico (porque é cansativo demais fazer quase tudo relacionado à parentalidade) mas também emocional, mental e até social (já pensou o peso de ter de ficar toda refeição alimentando na boca uma criança de 10 anos plenamente capaz de fazer isso sozinha?).
Não acho que exista palavra melhor pra definir isso: peso. É um peso enorme. Carregar um mimado pela vida é um suplício.
Muitos pais caem nisso e nem percebem. As vezes é por “amar demais”, as vezes por não querer que o filho passe o “perrengue” que passaram na mesma idade, as vezes é por não saberem fazer diferente, as vezes é por culpa, as vezes até por questões psicológicas mal resolvidas na sua própria história. Enfim, razões múltiplas com final igual: o peso.
Me compadeço por eles. Muitos clientes meus, durante o processo de educação parental, se perceberam nesse lugar e reconheceram a dor desse cenário. É um momento muito bacana de presenciar, apesar de ser difícil pra eles em muitos aspectos.
Então fica aqui meu abraço caso você se encontra num lugar assim agora. Respira fundo e arregace as mangas. Vai dar certo!
A dica prática do texto vai para esses pais. Se você leu o texto sobre desenvolvimento de habilidades através de responsabilidades que eu citei anteriormente, já vai estar munido de algumas orientações sobre o que fazer no cotidiano. Isso já é ótimo. Minha recomendação agora é para você dar o primeiro passo em família para melhorar a situação.
Primeiro de tudo, tenha uma conversa sincera com seus filhos sobre como as coisas estão se dando em casa. Nessa conversa, RECONHEÇAM que vocês, pais, têm mantido uma rotina que não é boa. Sim, isso é seu papel, não da criança/adolescente. Se vocês construíram e mantém essa cultura em casa, cabe a vocês o gerenciamento da mudança.
Talvez algo nesse sentido: “Filho, a gente tem vivido algumas coisas de uma forma que não está tão legal. Acreditamos que uma mudança é bem necessária. Então vamos conversar sobre como as coisas se dão agora e como vão passar a ser. Podemos fazer isso juntos! Papai e mamãe não souberam como organizar as coisas antes, mas agora vai ser um pouco melhor”.
Falar dessa forma é interessante porque não joga na criança a culpa pelo trem ter saído dos trilhos, mas informa o reconhecimento da situação e a responsabilidade de todos na contribuição de uma realidade melhor.
Temos de criar filhos para o mundo, para viverem bem nesse planeta. Para contribuir, construir, produzir, não só tomar, demandar. Isso começa desde cedo. Mas, nunca é tarde demais para tomar um caminho melhor. Como dizem os chineses: “o melhor dia para se plantar uma árvore é 20 anos atrás, o segundo melhor, é hoje”.
Henrique Costa Barros (CRP: 06/210223)
Psicólogo Clínico e Educador Parental do Vivência e Convivência
@psi_henrique.costa